A
AULA DE MORAL E CÍVICA
Eu
estudava na escola de teatro da então FEFIERJ, hoje Uni-Rio. Início dos anos
70, governo Médici, os chamados “anos de chumbo” da ditadura brasileira. O
contexto era estranho: a escola funcionava onde antes era o prédio da UNE, na
praia do Flamengo, onde também funcionou o CPC (Centro Popular de Cultura) de
Vianinha e Leon Hirszman, entre outros. Os professores da escola de teatro
haviam resolvido manter as paredes do palco principal, chamado por nós de
Palcão, queimadas, como as encontraram, como uma espécie de memória do que
havia acontecido ali. Quando o prédio foi tomado aos estudantes pela ditadura,
os estudantes colocaram fogo em tudo que poderia servir de prova contra eles e
boa parte do prédio queimou.
Havia
uma grande preocupação da ditadura com aquele prédio, tanto que, um de seus
últimos atos, antes de ser instaurado um governo civil, foi invadir o prédio
novamente, mandar os professores e funcionários pegarem seus pertences e, no
dia seguinte começar a demolir o prédio. Por acaso eu estava passando em frente
bem no dia da desocupação. Vi o prédio cercado pelo exército, desci do ônibus
em que estava e fui ver o que estava acontecendo. Fui barrado na entrada, porém
vi que o professor Orlando Macedo vinha descendo as escadas meio assustado,
esperei e perguntei para ele o que era aquilo. Orlando me respondeu: Não sei,
eles chegaram aqui, sem avisar, e mandaram que nós pegássemos nossas coisas e
deixássemos o prédio. Perguntei: a escola vai ser fechada? Não sei, respondeu
ele, não sei de nada. No dia seguinte ao passar novamente por ali, vi que havia
começado a demolição. Acho que em uma semana não havia mais nada. Doeu ver
isso.
Outra
coisa que posso dizer do contexto é que, como em outras universidades, havia
sempre informantes disfarçados de alunos na escola. Volta e meia conseguíamos
identificá-los, o clima era tenso, havia sempre a ameaça do malfadado 477,
artigo que permitia expulsar sumariamente um aluno da universidade por motivos
políticos. Fui chamado duas vezes à direção sob essa ameaça.
Bem,
agora imagine qual foi nossa reação quando soubemos que seríamos obrigados a
ter aula de Moral e Cívica; nós, estudantes de teatro. E pior, ficamos sabendo
imediatamente que quem iria nos ministrar essas aulas seria um general
reformado. Sabe quando entra uma barata voadora na sala? Nossa reação deve ter
sido algo parecido. Será que achavam que iam poder nos doutrinar? Era só para
nos intimidar? Nos reunimos para discutir o que faríamos diante daquele absurdo.
Boicotaríamos a aula? Faríamos um protesto? Greve? Como o clima estava bem
pesado e a coisa era muito estranha, resolvemos que iríamos à aula ver qual era
a do general. Depois veríamos o que fazer. Havia um pouco de curiosidade também
diante desse quase nonsense.
Primeiro
dia de aula do general. Quando este chegou já estávamos todos sentados. O general
se apresentou (infelizmente não lembro o nome dele) e disse que todas as meninas
da turma deveriam se retirar, que não se preocupassem com a presença. Elas
começaram a sair, meio constrangidas. Nós, os rapazes, nos olhávamos tensos.
Vem coisa aí, eu pensava. Deve ter passado muita coisa na cabeça de cada um
enquanto as meninas se retiravam. Aquele tipo de momento em que o tempo parece
parar. Após a saída das meninas, o general fechou a porta e começou. Começou a
contar piadas de sacanagem para a gente. Alguns de nós ríamos de nervoso,
outros porque achavam engraçado a situação ou as piadas, outros faziam de conta
que riam. Não eram risos soltos. Havia certo constrangimento no ar. E o general
não parou. Passou todo o tempo contando piadas de sacanagem. Acho que nos
liberou um pouco mais cedo. Saímos dali sem entender nada. Fui a mais umas três
ou quatro aulas. A mecânica se repetia, garotas fora e tome piada de sacanagem.
Deve ter sido isso o semestre inteiro. Deixei de ir porque achava que diante
disso o general não me reprovaria por faltas e nunca gostei muito do tipo de
piadas que ele contava. De uma coisa eu gostei: nada deixou tão claro para mim
o que aquela ditadura entendia por moral e por civismo. Nesse ponto as aulas
foram muito esclarecedoras.
Paulo Márcio, 29/03/2014
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